quinta-feira, 1 de julho de 2010

Aprendendo com os antigos I

Acredito piamente que a falta de atenção às lições de História é responsável por uma grande falta de perspectiva da qual padecem largos milhares de Portugueses. Se quando sentados no banco da escola desenhassem menos corações entre suspiros e mandassem menos SMSs - sim, eu percebo que era mesmo urgente -, teriam, porventura, tido oportunidade de aprender uma grande lição: que isto de políticos é uma raça que por cá se queda há uns já valentes milhares de anos e que pelas medidas dos que já se finaram se tira a pinta aos de hoje e aos que mais tivermos de vir a sofrer. (Pensando bem, dada a cada vez maior decadência do ensino após o consulado da outra senhora, acho que nem que os alunos quisessem...) Back on track, já os ouço clamar: "Ah, mas então e o progresso da raça humana?" Certo é que já ninguém rasga as vestes como os Romanos, mas politicamente falando, o progresso resume-se à notavelmente célere aprendizagem de como capitalizar as novas tecnologias e desenvolvimentos em proveito próprio; digo: em proveito dos mais altos interesses do Estado. (Estou a esforçar-me por me actualizar com as novas referências semânticas...)

Um caso curioso que ilustra esta ingenuidade lusa passou-se precisamente com esses Romanos - que bem dizia o pequeno gaulês, e com alguma razão, que eram loucos. Deu-se isto lá por volta dos últimos cinco séculos antes do nascimento de Cristo na cidade de Roma. Na época era Roma uma República governada por um punhado de aristocratas e queixava-se a plebe (não lhe faltando a razão) que expulsara o último Rei para nada, visto que do poder prometido nem o cheiro. Ora o descontentamento deu em divórcio unilateral (e acha o governo que é progressista) quando o Senado elegeu para cônsul um senhor de elevada estirpe e igualmente elevado nariz: Appius Claudius Inregillensis. O que é o fizeram esses sábios romanos confrontados com as atitudes desse tiranozito empertigado? Mataram-no? Protestaram nas ruas? Deitaram fogo à cidade? Nada disso! Fizeram o que ficou conhecido para a história como: secessio plebis. Ou seja, toda a plebe (a esmagadora maioria da cidade claro está) abandonou Roma e acampou num monte ali perto, deixando os aristocratas para se governarem a eles mesmos. De génio! Claro está que conseguiram o que queriam e esse ano de 494a.C. viu a criação da magistratura do Tribuno da Plebe, cuja eleição dependia não do Senado mas do Populusque Romanus.É que isto de querer comer e não haver quem produza, transporte, venda e confeccione o repasto é coisa que deve ter alterado os mais altos interesses do Estado. E nem quero imaginar a desdita dos pobres senadores, que tiveram que ouvir as Julias, as Claudias, as Fabias e as Valerias em ataques apopléticos quando perceberam que as lojas estavam todas fechadas!

Ora como em equipa que joga bem não se mexe (algo que o Sr. Queiroz devia ter percebido antes de substituir o Hugo Almeida no funesto jogo de Terça), a plebe voltou a utilizar a mesma receita um punhado de vezes mais nas centúrias seguintes. Quando a necessidade assim o obrigava, lá se empacotava tudo muito bem e se ia passar uns dias de descanso ao campo à espera que os senhores de toga capitulassem da sua arrogância. Famosos ficaram os gerados pela recusa do Senado das Leges Duodecim Tabularum (449 a.C.) da Lex Canuleia (445 a.C.) ou da Lex Hortensia (287 a.C.). Ora com o tempo a plebe foi ganhando poder em Roma, sendo-lhe ultimamente abertas todas as magistraturas, pontificados e o assento no Senado. E já os ouço: "Ahah! Então não foi ingenuidade nenhuma! Deu resultado. Vamos todos organizar uma deslocação de Lisboa para o Monte da Caparica e ficamos lá à espera que pelas janelas dos gabinetes do Terreiro do Paço entrem ares de bom-senso e o governo tenha uma epifania!"

A questão é que nada mudou realmente. A plebe ficou possibilitada de concorrer nas eleições aos cargos públicos, de facto. Mas quem tinha os milhares de sestércios necessários para subornos e organização de jogos para conseguir assegurar uma eleição? Os ricos! Plebeus, mas ricos. Famílias que depressa se apressaram a integrar na aristocracia de linhagem, tanto por casamento como por compadrio político. E apesar do seu estatuto de plebeus, não se compadeceram mais das dificuldades da plebe-pé-descalça do que os seus colegas patrícios. A plebe viveu assim cinco séculos de ilusão de uma luta pela igualdade social. Para o final da República o nível de demagogia e aproveitamento desse conflito desencadeou décadas de guerras civis, até que surgiu vencedor Gaius Iulius Caeser Octavianus Augustus que acabou com a brincadeira republicana e deu a volta à coisa com um "L'Etat c'est moi!" muito mais subtil que o de Luís XIV. Foi de facto uma evolução do paradigma social algo comparável ao que aconteceu no século XIX como o novo-riquismo proporcionado pela revolução industrial. O príncipe italiano Di Lampedusa expôs a lógica subjacente de maneira brilhante na sua obra-prima O Leopardo (Il Gattopardo): "Se vogliamo che tutto rimanga come è, bisogna che tutto cambi!" (Se queremos que tudo fique na mesma é necessário que tudo mude!).

O que aprendemos hoje com os antigos? Iludam-se quanto quiserem com as falsas idolatrias e com as ideologias partidárias vãs e balofas que marcam o nosso espectro político da extrema esquerda à extrema direita. Por mais que tudo mude (entre todas as possíveis combinações de governo possíveis), tudo ficará sempre na mesma porque a ninguém interessa realmente que o paradigma do nacional porreirismo seja perturbado. Relembro que na votação na AR para o aumento dos valores não-justificados de financiamento das campanhas eleitorais apenas dois ou três deputados votaram contra. Em bom português: a m*da muda mas o cheiro é o mesmo. Os patrícios romanos sempre tinham algum sentido de estado e dever público; a nobreza medieval sempre era galante e honrada; a aristocracia da época moderna tinha o seu brilho, distinção e elegância; a burguesia saída da Revolução Industrial sempre começou por ser séria e comprometida. Agora isto!, esta degenerescência, este abastardamento que temos por classe dirigente? Isto é simplesmente, parafraseando Eça: "uma choldra ignóbil!".

Imagem: The Secession of the People to the Mons Sacer, engraved by B.Barloccini, 1849 (engraving)- cortesia de Fotobank

1 comentário:

  1. Não queres dar aulas de Direito Romano na Faculdade de Direito de Lisboa? Garanto-te que fazia a cadeira de novo, para que ganhar o gosto que não consegui da primeira vez, mas que exprimentei agora com o escreveste.

    Apenas uma emenda: só houve um deputado a votar contra a referida alteração à lei de financiamento dos partidos políticos, e cuja declaração de voto merece ser lida: António José Seguro, do PS. O que me leva a dizer - ainda há Homens.

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