terça-feira, 5 de abril de 2011

Conversas de vão de escada


Elegeram o limbo entre o privado e o público como paradigma da sua relação e diálogos. Tal é consubstanciado pelo local privilegiado por ambos para a interacção: o patamar do vão de escada. Local que é público e para o qual dão os apartamentos que habitam, afigurando-se então como limite da privacidade destes vizinhos de patamar. Lugar que, graças à tradição de deixar as portas de rua entreabertas enquanto debatem, ganha um ambiente que cristaliza a indefinição do nível de intimidade que consentem àquela relação. 

Seguem quase sempre uma dialética hengeliana, talvez por acaso, talvez por princípio dialético, talvez por medo de dar demasiado de si mesmo perseverando numa antítese reveladora. O debate nunca se esgota, pois para aqueles que se deleitam com a senda da compreensão dos vários Universos (do átomo, do Homem, da sociedade e, em última instância, da mente), não haverá nunca saciedade. 

Os ponteiros do relógio avançam inexoravelmente na sua cadência ritmada de precisão suíça e pontualidade britânica. Alguma palavra, gesto ou omissão gera, por uma qualquer via neuronal complexa e além do entendimento ou consciência de ambos, a noção de que é necessário abandonar os prazeres abstractos e metafísicos, pois além d’aquele vão de escada a vida espera. Invariavelmente essa noção surge-lhe a ela. 

Ele aprendeu a ler-lhe a expressão e adivinha-a mal esta se instala na sua mente. Aprendeu a não duvidar do cariz imperioso com que tal sensação se aloja no consciente dela e respeita-o, aquiescendo sem qualquer óbice ao término da conversação. Mas no íntimo não o entende; porque não o sente. Sente, ao invés, uma vontade de prolongar o momento ad infinitum. Não sabe explicar porquê e não se perde em divagações. 

Deseja boa noite de forma cortês, retira-se para lá do vão de porta e, lançando ainda uma qualquer despedida, empurra então a contragosto a barreira física que o separa da rua. E dela. A luz escapar-se para dentro das casas e, no agora sombrio patamar, o eco distante das suas ideias, sonhos e utopias dispersa-se no silêncio tranquilo da noite que chegou.